Quando abriu a porta sentiu uma vontade imensa de a voltar a fechar. Era Isabel, que perdida em lágrimas entrava de rompante na casa de Maria, fazendo com que esta permanecesse imóvel junto à porta. Maria tinha medo de a fechar, como se a fechar significasse fechar a entrada de uma outra visão, fechar a entrada ás boas notícias, fechar a entrada ao regresso de Manuel.
- O António veio chamar-nos, temos que ir fazer o reconhecimento de dois corpos que foram encontrados numa embarcação que deu à costa, mas por estar irreconhecível não sabem se será a dos nossos homens. – disse Isabel com uma velocidade tão acelerada como a que entrou em casa de Maria, como se tivesse medo de não conseguir terminar o seu discurso, ou de ter consciência da situação que relatava.
Maria sentia a sua cabeça a andar à roda. Não conseguia acreditar em todo o que se estava a passar, desde o seu regresso da Casa da Praia na manhã do dia anterior, que nada lhe parecia ser real. Olhava Isabel com um olhar vago e distante, sabia que ela continuava a falar mas dessa acção só conseguia percepcionar o movimento dos seus lábios como se se movimentassem em câmara lenta, a sua adição estava totalmente focalizada na chuva que começara a cair e cuja intensidade fazia as pedras do chão gritar de dor, assim como, no cantar dos trovões que de acordo com o que Manuel lhe ensinara aproximavam-se vindos do mar. Maria sentiu um arrepio que começara no fim do pescoço e se alastrara por todo o seu corpo e que fez com que regressasse ao presente.
- Maria! Maria…reage! Diz-me que não são deles os corpos que foram encontrados…por favor, Maria, diz-me…por favor. – Isabel intercalava as palavras que dizia com gemidos de choro.
- Eu… - Maria não tinha terminado a frase e já Isabel se abraçara a si, fazendo, assim, com que Maria a acompanhasse num pranto de choro, desesperado e agoniado.
Poucos minutos depois estavam as duas a caminho do porto, debaixo de uma louca tempestade. Pela raridade destes fenómenos naquela província piscatória nenhuma das duas tinha guarda-chuva, mas na verdade este facto não as assustara, estavam imunes a todas as dificuldades. Todo o desespero dos últimos momentos das suas vidas fez com que nenhuma das duas tivesse a real consciência de que poderiam efectivamente confirmar a morte do corpo dos seus maridos. Do corpo, mas não da alma, pois a alma de Pedro e de Manuel, a cada uma das suas mulheres pertencia, pelo menos durante muitos anos seria isso que consolava as mulheres dos pescadores que já teriam perdido a vida. O mar leva os seus homens, a pedido de desejos divinos, mas a alma deles com elas permanecia. Era esta alma que as levariam ao seu marido, num outro mundo que não o terreno, quando pelo mesmo desejo divino lhes fossem tirada a vida.
- Isabel, espera. Eu não vou, não sou capaz. – disse, Maria, parando numa altura do percurso em que era impossível se abrigarem para conversarem – Prefiro viver eternamente na dúvida do regresso de Manuel, à certeza de o ter perdido, não serei capaz de sobreviver se for o corpo do meu marido que lá estiver, essa dor será maior do que a força que poderei ter para continuar a viver…e criar o nosso filho.
- Maria , eu também posso encontrar o meu marido, mas tenho uma fé tão grande em mim, que chega pelas duas. Não são eles, não vão ser eles. E quanto a não teres força para continuar, fica feliz pelo Manuel não te ter ouvido dizer isso, queres melhor motivo para viver do que um filho que vocês tanto desejavam? – Isabel encerrava, assim, qualquer possibilidade de não continuarem o percurso em direcção ao porto,mesmo porque Maria sentia-se envergonhada pelas suas próprias palavras, seguindo os passos da sua amiga que pela primeira vez desde o desaparecimento de Manuel e Pedro parecia estar a recuperar a sua lucidez.
Chegando à Central do porto,foram recebidas por um homem que se apressou a entregar-lhes cobertores, visto estarem mais do que ensopadas, não fosse a paragem súbita de Maria e teriam de certo melhor aspecto.
- Fomos informadas pelo António que teríamos que fazer …- disse Isabel, continuando a assumir uma racionalidade admirável e louvável.
- Por favor, por aqui – disse o homem que as recebera.
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