Amava a dança. Esta era a única certeza que Lúcia tinha. Sempre seguira o seu sonho e de todas as decisões que já tomara até aquele dia, essa era, sem dúvida, a decisão de que mais se orgulhava. No entanto, o sorriso feliz que oferecia às plateias que a assistiam encobria um outro sorriso. Era um sorriso seco, marcado pela história de uma vida de escolhas e sofrimento. A sua vida.
Lúcia acabava de viver um momento muito importante na sua carreira, talvez o mais importante de todos, tinha realizado um solo num dos mais conceituados teatros da sua época. Só ela sabia o quanto lhe tinha custado alcançar aquele sonho de criança. Nem sabia ao certo quantas vezes o tinha imaginado. O seu maior sonho tinha-se realizado. Tinha atingido a sua independência profissional. Tinha o seu talento reconhecido e aplaudido.
Mal o espectáculo terminou, dirigiu-se ao seu camarim onde foi encontrar o mesmo cenário de sempre. Flores, flores e mais flores, de todas as cores e espécies, acompanhadas por cartões cheios de nada, escritos com caligrafias perfeitamente desenhadas. Lúcia deixou que o seu corpo perdê-se a força e ao sentar-se ficou posicionada precisamente em frente ao espelho verdadeiramente gigantesco do seu camarim. Há muito tempo que evitava aquela situação, enfrentar-se a si mesma. Ao longo da sua vida teria enfrentado o mundo inteiro se necessário, mas sempre fora incapaz de enfrentar-se a si própria. Ouvir os seus sentimentos. Ao olhar o reflexo do seu próprio olhar, perdeu o escudo que carregava consigo e começou a chorar, tapando a sua face com ambas as mãos. Julgando poder esconder-se de si própria.
Lúcia fugira de casa muito cedo, o seu desejo de dançar profissionalmente afastava-se muito dos bons costumes de dona de casa planeados pelo seu pai, na verdade por qualquer chefe de família daquela época para as suas filhas. A sua mãe sofria por ela, mas nunca ousou opor-se ao marido. No dia em que Lúcia fugiu de casa o seu pai ordenou que nunca mais se pronunciasse o nome da filha em sua casa, muito provavelmente devido à discussão que teria tido com Lúcia na noite que antecedeu a sua fuga e da qual nunca ninguém teve o relato, nem mesmo Adelaide, mãe de Lúcia, que nunca mais fora a mesma desde o desaparecimento da filha.
Lúcia chorava a solidão de todos aqueles anos por oposição à luta do sonho da sua vida, ou pelo menos do sonho que a fazia feliz em criança, com o passar dos anos duvidava se era o seu sonho que a faria continuar, se o seu orgulho e vontade de mostrar ao seu pai que estava enganado ao gritar-lhe que ela não servia para nada. Estas palavras marcaram-lhe para toda a vida, ouvia-as todas as noites no silêncio das pensões velhas e imundas, que só mudavam de localidade, nunca de condições.
Para trás deixou não só a família mas também um grande amor, o seu primeiro amor. E, naquele momento, no frio do seu camarim nada lhe parecia fazer sentido. Só se sentia viva quando dançava. Quando a música terminava tudo o que deixara para trás corroía-a por dentro. Nos últimos tempos sentia uma vontade imensa de voltar a casa, à sua terra, à segurança do seu lar. Sentia-se ainda mais triste pelo facto de ter mandado um convite para a sua estreita para a direcção da sua casa, cuja destinatária era a sua avó paterna. Apenas a correspondência desta não era aberta pelo seu pai, sendo que na carta pedira para que informasse também a sua mãe Adelaide, para que pudessem vir as duas vê-la. Julgara ter a certeza da presença de ambas, mas não as avistou dos bastidores nem houve ninguém que perguntasse por si aos assistentes.
Lúcia limpava as suas lágrimas, sendo invadida por um cansaço extremo que a fez começar a arrumar tudo para que pudesse dirigir-se ao hotel onde estava hospedada, ao longo da sua carreira foi tendo cada vez mais posses financeiras, até que actualmente podia considerar que tinha uma boa poupança.
Ao chegar ao hotel, Lúcia foi informada que estaria alguém à sua espera no quarto. Lúcia sentiu o coração disparar, a possibilidade de rever a sua mãe ou a sua avó deixava-a tão vulnerável e tão feliz. Contudo, ao entrar no quarto foi surpreendida pela presença de um homem de cabelos brancos, sentado numa cadeira de rodas posicionada na direcção oposta à porta, de forma a vislumbrar a linha do horizonte. Lúcia sentiu que o seu corpo tinha a leveza de uma pena, como se pudesse cair a qualquer momento, sem sequer fechar a porta dirigiu-se ao homem que a esperava. Caiu a seus pés, deitou a cabeça no seu colo, agarrou nas suas mãos e desatou a chorar. Libertou as lágrimas que evitou durante todos aqueles anos.
- Filha, minha filha, procurei-te estes anos todos, mas as tuas constantes viagens, de cidade em cidade, devido ao teu sonho, bem sei, tornaram impossível o nosso encontro. O tempo que demorava a descobrir a tua paragem era o mesmo que demoravas a viajar rumo à próxima. – disse o pai de Lúcia com a voz mais serena que ela alguma vez escutara, o que a fez olhar em sua direcção.
- Pai... – começou Lúcia, mas depressa os dedos do seu pai pousaram sobre os seus lábios, impedindo-a de continuar.
- Lúcia, eu estou muito doente, e sei que vou morrer dentro em breve, mas a minha alma não deixa o meu corpo partir, não sem antes te pedir perdão, te pedir todos os perdões do mundo, na certeza que me irás perdoar…mas acima de tudo não sem antes dizer-te que és a melhor bailarina do mundo, minha querida. Hoje, vi a melhor bailarina do mundo. Estou muito orgulhoso, Lúcia. Parabéns. Agora deixa-te ficar aí, volta a descansar a tua cabeça no meu colo, para eu poder partir, minha pequenina. Não pares de sonhar nunca.
Lúcia, obedeceu desejando apenas eternizar aquele momento. De imediato deixou de ouvir a respiração do seu pai, e só conseguiu sussurrar:
- Oh, pai, eu amo-o.
Em sua direcção vieram três sombras que só ao chegarem bem perto de si, reconheceu. A sua mãe, a sua avó e o seu irmão.
Todos reunidos num abraço cuja força só não era mais forte que a luta por um sonho.